Universidades públicas e empresas privadas poderão trabalhar de forma muito mais próxima a partir de agora, segundo uma nova lei sancionada nesta semana pela presidente Dilma Rousseff. Chamada de Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, ela permite, entre outras novidades, que professores em regime de dedicação integral desenvolvam pesquisas dentro de empresas e que laboratórios universitários sejam usados pela indústria para o desenvolvimento de novas tecnologias — em ambos os casos, com remuneração.
“É o início de uma nova fase para a pesquisa e inovação tecnológica no Brasil”, disse a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Helena Nader, após a cerimônia de assinatura do projeto, em Brasília.
Outro aspecto importante, elogiado por empresários e pesquisadores, é a desburocratização dos sistemas de licitação, compra e importação de produtos destinados à pesquisa científica e tecnológica. O novo marco altera a famigerada Lei de Licitações 8.666, dispensando a obrigatoriedade de licitação para “aquisição ou contratação de produto para pesquisa e desenvolvimento”.
Ao todo, nove leis são modificadas pelo Marco Legal, que foi discutido ao longo de cinco anos com a comunidade científica e empresarial. Veja abaixo uma lista das leis afetadas, com as principais modificações, links e opiniões de cientistas. Alguns dispositivos são inéditos, outros visam a clarificar pontos polêmicos, que careciam de segurança jurídica para serem implementados de forma efetiva.
A versão final do projeto aprovada no Congresso em dezembro está aqui: MarcoLegalCTI_semvetos
Os principais destaques são:
— Dispensa da obrigatoriedade de licitação para compra ou contratação de produtos para fins de pesquisa e desenvolvimento
— Regras simplificadas e redução de impostos para importação de material de pesquisa
— Permite que professores das universidades públicas em regime de dedicação exclusiva exerçam atividade de pesquisa também no setor privado, com remuneração
— Aumenta o número de horas que o professor em dedicação exclusiva pode dedicar a atividades fora da universidade, de 120 horas para 416 horas anuais (8 horas/semana)
— Permite que universidades e institutos de pesquisa compartilhem o uso de seus laboratórios e equipes com empresas, para fins de pesquisa (desde que isso não interfira ou conflita com as atividades de pesquisa e ensino da própria instituição)
— Permite que a União financie, faça encomendas diretas e até participe de forma minoritária do capital social de empresas com o objetivo de fomentar inovações e resolver demandas tecnológicas específicas do país
— Permite que as empresas envolvidas nesses projetos mantenham a propriedade intelectual sobre os resultados (produtos) das pesquisas
O Marco Legal foi publicado no Diário Oficial da União do dia 12 (Lei 13.243 / 2016), com cinco vetos, cujo impacto está sendo analisado pelo setor. O histórico de tramitação e os nomes dos parlamentares envolvidos no processo estão disponíveis aqui: http://goo.gl/CxqXBX
O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) criticou o Marco Legal, classificando-o como “um avanço vigoroso do processo de privatização dos recursos humanos e patrimônio científico públicos”.
Para o biólogo Paulo Arruda, da Unicamp, o Marco Legal é “extremamente bem vindo”. Segundo ele, há uma grande massa crítica de jovens cientistas, “bem treinados, criativos e competentes”, capazes de aproveitar as oportunidades criadas pela nova lei para inovar e empreender. Mas é preciso que as instituições acordem também para esse potencial.
“O Brasil gerou um monte de gente com conhecimento e engaiolou esse pessoal nas universidades públicas”, diz o também biólogo e geneticista da Unicamp, Gonçalo Pereira. Segundo ele, está na hora de dar liberdade àqueles que querem empreender.
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Veja abaixo um detalhamento maior das nove leis modificadas pelo Marco Legal:
Lei no 10.973, de 2 de dezembro de 2004: Estabelece medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo.
Novidades: Essa é a lei mais impactada pelo Marco Legal, com dezenas de modificações. Um dos destaques é o artigo que permite às universidades e outras Instituições públicas de pesquisa científica e tecnológica (chamadas ICTs) “compartilhar seus laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações” com empresas e pessoas físicas para atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, “desde que tal permissão não interfira diretamente em sua atividade-fim nem com ela conflite”. O mesmo vale para o uso de seu “capital intelectual”.
Gonçalo Pereira, pesquisador da Unicamp e cofundador da GranBio (empresa de biotecnologia focada em genética de cana-de-açúcar e etanol celulósico), elogiou a medida. Segundo ele, são poucas as empresas que possuem capital e expertise suficientes para montar laboratórios próprios. “Se elas puderem trabalhar em parceria com as universidades e aproveitar sua infraestrutura já instalada, será uma vantagem imensa para ambas as partes”, conclui Pereira.
Para o presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei), Gerson Pinto, a lei “abre as universidades para a inovação, sem prejuízo da sua função básica de pesquisa”, e permite que essa interação ocorra num ambiente de transparência e segurança jurídica. “Do ponto de vista regulatório é um avanço importante, que vai na direção que o Brasil precisa.”
Outra novidade: As ICTs poderão assinar acordos com empresas para o desenvolvimento de pesquisas conjuntas, “podendo a ICT ceder ao parceiro privado a totalidade dos direitos de propriedade intelectual mediante compensação financeira ou não financeira, desde que economicamente mensurável”. Esse é um ponto crucial, segundo Pereira, porque até agora a propriedade dos resultados ficava com a instituição pública, que era obrigada a abrir uma concorrência para licenciar a tecnologia. Ou seja, a empresa que pagou pela pesquisa corria o risco, no fim das contas, de ver o resultado ser licenciado para uma outra empresa.
Outros artigos permitem ao poder público (União, Estados e municípios) fomentar diretamente a inovação tecnológica em empresas e ICTs por meio de vários mecanismos, incluindo a contratação direta de projetos de pesquisa “que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador”. Detalhe: sem obrigatoriedade de licitação. Digamos, por exemplo, que um Estado queira investir na produção de energia solar: Ele poderá encomendar a empresas e/ou universidades o desenvolvimento de uma tecnologia específica para isso, sem precisar abrir uma licitação.
Pesquisadores do serviço público em regime de dedicação exclusiva poderão “exercer atividade remunerada de pesquisa, desenvolvimento e inovação em ICT ou empresa (…) desde que assegurada a continuidade de suas atividades de ensino e pesquisa”. Ou seja: um professor universitário em tempo integral poderá trabalhar simultaneamente em projetos de pesquisa em empresas, desde que isso não interfira em seu trabalho como professor e pesquisador dentro da universidade.
Lei no 6.815, de 19 de agosto de 1980: Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil.
Novidades: Inclui uma nova situação em que vistos temporários podem ser concedidos a estrangeiros: “na condição de beneficiário de bolsa vinculada a projeto de pesquisa, desenvolvimento e inovação concedida por órgão ou agência de fomento”.
Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993: Institui normas para licitações e contratos da Administração Pública
Novidades: Essa é a famigerada “Lei de Licitações”, que obriga instituições e servidores públicos a abrir concorrência de preços e sempre optar pela oferta mais barata sempre que precisam comprar alguma coisa. Ela é apontada há décadas como um dos maiores entraves ao desenvolvimento da ciência nacional, não só pela morosidade e burocracia excessiva dos processos envolvidos, mas também por não levar em conta a qualidade e outras especificidades do produto desejado. Por exemplo: Imagine que você é um pesquisador que precisa comprar um microscópio para o seu laboratório. Obviamente, há muitos microscópios no mercado, e a lei te obriga a comprar o mais barato e não necessariamente o melhor. Mesmo quando só existe um produto no mercado, o pesquisador é obrigado a abrir uma licitação.
A novidade crucial é que o Marco Legal cria uma exceção nessa lei, dispensando licitações “para a aquisição ou contratação de produto para pesquisa e desenvolvimento”. Ou seja, o pesquisador poderá comprar diretamente o microscópio que é mais adequado para sua pesquisa, não necessariamente aquele que é o mais barato.
“Era uma lei anti-ciência”, resume o engenheiro Milton Mori, diretor da Agência de Inovação da Universidade Estadual de Campinas (Inova Unicamp), referindo-se à Lei 8.666.
Lei no 12.462, de 4 de agosto de 2011: Institui o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC
Novidades: O Marco Legal estende os benefícios do RDC às licitações e contratos necessários à realização “das ações em órgãos e entidades dedicados à ciência, à tecnologia e à inovação”.
Lei no 8.745, de 9 de dezembro de 1993: Dispõe sobre a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público
Novidades: Passa a incluir a admissão de pesquisadores e técnicos “para projeto de pesquisa com prazo determinado, em instituição destinada à pesquisa, ao desenvolvimento e à inovação” como uma necessidade de excepcional interesse público, em que cabem os benefícios da lei
Lei no 8.958, de 20 de dezembro de 1994: Dispõe sobre as relações entre as instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica e as fundações de apoio
Novidades: Permite que os Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) das instituições públicas de pesquisa funcionem como fundações — dando mais autonomia e reduzindo burocracia para sua atuação, segundo Milton Mori, da Inova Unicamp.
Lei no 8.010, de 29 de março de 1990: Dispõe sobre importações de bens destinados à pesquisa científica e tecnológica
Novidades: Esclarece que as isenções de impostos previstas para importação de máquinas e equipamentos aplicam-se “somente às importações realizadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por cientistas, por pesquisadores e por Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação (ICT) ativos no fomento, na coordenação ou na execução de programas de pesquisa científica e tecnológica, de inovação ou de ensino e devidamente credenciados pelo CNPq.”
Lei no 8.032, de 12 de abril de 1990: Dispõe sobre a isenção ou redução de impostos de importação
Novidades: Esclarece que as isenções e reduções do imposto de importação se aplicam às importações realizadas por ICTs e por empresas “na execução de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação”.
Lei no 12.772, de 28 de dezembro de 2012: Dispõe sobre a estruturação do Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal
Novidades: O Marco Legal amplia o número de horas que pesquisadores da rede pública em regime de dedicação exclusiva podem dedicar a atividades no setor privado, de 120 para 416 horas anuais, ou 8 horas semanais.
Também cria mais facilidades para a importação de bens e insumos para uso em pesquisa científica e tecnológica, determinando que eles tenham “tratamento prioritário e observem procedimentos simplificados” nos processos de importação e desembaraço aduaneiro.